Desde 3 de abril, está em cartaz no circuito brasileiro Valsa com Bashir, um documentário em longa-metragem sobre o massacre de palestinos durante a guerra entre Israel e Líbano ocorrida em 1982. Produção franco-germano-israelense, dirigido por Ari Folman, o filme tem sido destaque ao redor do mundo não só pelo seu resultado final (como obra cinematográfica e pelo roteiro bem resolvido), mas principalmente pela escolha da linguagem gráfica utilizada. Folman utilizou animação para retratar os horrores da guerra, resgatados a partir de suas próprias lembranças e de depoimentos de sete colegas do exército.
Conhecido como “Guerra do Líbano”, o conflito foi iniciado com a invasão do Líbano por Israel, em junho de 1982, e culminou com o massacre de cerca de 3.000 refugiados palestinos. Estes, em sua maioria crianças, idosos e mulheres, estavam nos campos de Sabra e Chatila e foram mortos pelos “falangistas” cristãos.
Os objetivos israelenses eram eliminar o risco de o norte do país ser alvo de mísseis e garantir Bashir Gemayel, líder cristão e aliado político, como presidente do Líbano. Em agosto, às portas de Beirute, enquanto o exército israelense aguardava o comando para entrar na cidade, os combatentes palestinos foram evacuados em navios para Tunísia. No mesmo período, Bashir Gemayel foi eleito presidente, mas logo depois foi assassinado numa explosão enquanto discursava no quartel falangista em Beirute.
Ao cair da noite, em represália, as milícias cristãs entraram nos campos de refugiados palestinos. Por dois dias inteiros foram ouvidos tiros incessantes vindos dessas regiões, iluminadas à noite pelos fogos de comunicação israelenses. O massacre só chegou ao fim quando mulheres sobreviventes se projetaram sobre as forças israelenses que cercavam a cidade e a imprensa internacional tomou conhecimento do fato.
Esses tristes acontecimentos estão documentados em Valsa com Bashir, do ponto de vista dos jovens soldados israelenses enviados para a guerra. A história se desenrola a partir de um encontro num bar entre Ari Folman, personagem principal do documentário, e um amigo. Ele conta a respeito de um sonho recorrente sobre o período do conflito. Porém o sonho, como todo sonho, era confuso, em flashes, e não fazia muito sentido. Outra coisa que o incomodava era o fato de não se recordar de qualquer episódio vivido por ele no durante a guerra do Líbano, por mais que se esforçasse. Aconselhado pelo amigo, Ari começa a contactar outros ex-combatentes, colegas seus, à procura das próprias lembranças.
Intercalando depoimentos, sonhos e as lembranças que vão emergindo de sua mente, Folman conta a história de forma cronológica e documenta não só os fatos mas também a construção de suas recordações.
Todas as cenas são feitas em animação – desde os sonhos até os ataques aéreos. Mesclando desenhos em 2D e 3D, utilizando traços de contornos grossos, marcantes e cores chapadas, a produção possui uma estética gráfica influenciada pelos quadrinhos de Art Spiegelman.
As cenas de guerra, coloridas, acompanhadas por uma forte trilha sonora punk - que lembra um ambiente psicodélico, ligadão -, são seguidas por outras com estética mais limpa, em que predominam cores frias, tons pastéis, quase sem ruídos – cenas que remetem à ressaca pós-droga. A maneira como os fatos são apresentados é uma viagem através das imagens marcantes dos desenhos, de onde, ao final, o espectador é despertado de forma definitiva (não vale contar o final do filme). É uma alusão ao choque de consciência resultante da tomada de conhecimento quanto aos fatos da guerra (e talvez das consequências do uso de drogas), fazendo um paralelo com o despertar das lembranças do próprio Ari Folman.
É uma verdadeira graphic novel, tão atrativa ao público jovem quanto as HQs. Segundo o próprio diretor – em sua entrevista para o Cahiers du Cinéma -, o objetivo era mesmo atrair a atenção dos mais jovens para o assunto, mas sem a idolatria à imagem do soldado poderoso e heroico, tão comum nos filmes estadunidenses. O objetivo era justamente o oposto: um documentário sobre a guerra, porém contra a guerra, contando inclusive as consequências dela nas vidas dos sobreviventes.
Como linguagem documental, o filme segue a vertente da participação do documentarista na história. Ele apresenta não só os fatos históricos de guerra (durante as narrativas dos combatentes) mas também estados de consciência e sonhos do protagonista/diretor. A utilização da linguagem animada é especialmente positiva nesses momentos, já que a expressividade de sensações encontra sintonia com o lirismo dos desenhos. A possibilidade surreal da animação merece destaque em dois momentos: durante a descrição de um estado de embriaguez de Folman, pouco depois do embarque dos soldados para o Líbano, onde ele se sente como que levado sobre a barriga de uma mulher através dos mares; e na cena da chegada a Beirute, em que um soldado israelense dança numa das ruas da cidade, disparando uma metralhadora, tendo o cartaz de Bashir Gemayel ao fundo. O documentário recebeu indicação para o Oscar 2009 e ganhou o Globo de Ouro e o Festival de Cannes – era o único concorrente longa em animação.
Quanto à utilização das técnicas de animação, Valsa com Bashir merece algumas ressalvas na exatidão da representação de alguns movimentos (um tanto duros), no timing, mas essas imperfeições não afetam ou diminuem a força das imagens, que parecem fazer parte de um estilo da direção de arte composto para a narrativa.
Ari Folman tem sido apontado erroneamente como o criador de um “subgênero de documentário”: o documentário animado. Assim como contar fatos através da animação é muito mais comum e antigo que o alcance da lembrança da maioria dos críticos de cinema, a animação enquanto linguagem não é subgênero de qualquer outro gênero de cinema tipo vida-real. Winson McCay já registrava em seus desenhos (1918) o naufrágio do Lusitânia, ocorrido em 1915, já que na época não havia registro de imagem real de acidentes.
A utilização de animação para retratar o mundo o imaginário ou lembranças é mais usual ainda. No Brasil temos dois exemplos marcantes: a sequência da lembrança da infância do personagem André (Lázaro Ramos), no filme O Homem que Copiava (2003), de Jorge Furtado, e a primeira cena da novela Bang Bang (Rede Globo, 2006), que contava um fato passado (o assassinato de uma família) que deu origem a uma vingança, conflito principal da trama.
O valor e o destaque a serem dados a Ari Folman devem-se ao fato de ele ter conseguido utilizar a animação de forma impactante, integrando forma, conteúdo e o meio (veículo), de maneira que sua mensagem pôde ser transmitida o mais completamente possível em termos narrativos e audiovisuais. E ele não teve pudores em escolher a linguagem da animação para alcançar seu objetivo.
Valsa com Bashir foi transformado em HQ, lançada no Brasil pela L&PM.